Uma travessia
de BTT em 19 dias consecutivos, 2.200kms, 36.000mts de desnível positivo… Uma
travessia sem corantes nem conservantes ou aditivos; isto é, sem proteínas whey, recoveries, géis ou barras, feita à custa de Menús del Día, bocadillos de
jamón, paellas e ensaladas mixtas e muita vontade de
pedalar e de testar os limites da resiliência, da capacidade física e mental, e
de resistência às temperaturas diárias de mais de 40o, típicas da Andaluzia
em pleno Agosto. Os dias eram longos, 8 a 10h em cima da bike, médias de 120/
130kms diários, com altimetrias a rondar os 2000/2500mts em cada dia… Esta foi
a receita para a nossa TransAndalus!
Bike Magazine, edição de Novembro |
Se me
dissessem que a Andaluzia tinha tanta montanha talvez não acreditasse… Se me dissessem que tinha tanta diversidade e
variedade assim, talvez também duvidasse… Mas agora posso afirmar que é das
regiões mais variadas que conheço!
O TransAndalus
(TA) é uma espécie de tour da
Andaluzia em BTT, que qualquer um pode percorrer, fazendo download dos tracks em http://www.transandalus.org, bem como
toda a informação necessária. O percurso passa por toda a espécie de caminhos:
estradões, single tracks, alfasto,
areia, ciclovias, vias verdes (antigas linhas férreas), caminhos cheios de
pedras, subidas, descidas, planícies, montanhas, praias, florestas, deserto,
GRs (Grandes Rotas), senderos e vias
pecuárias.
A TA está
pensada para ser feita com alforges, mas para se fazer o percurso na totalidade
é melhor não os levar, para se poder usufruir em pleno dos imensos troços
técnicos e single tracks. Mesmo assim
é preciso interiorizar que vai ser necessário empurrar bastante! A rota é de
uma dureza extrema, a nível altimétrico e de dificuldade de muitos troços.
Outros nem por isso!
Os nossos 19
dias foram resumidamente passados assim:
1ª Etapa: Vila Verde Ficalho – Trigueros
(140kms, 2100mts de desnível)
O 1º dia foi
marcante, de calor abrasador, em que se assinalou a passagem pelas antigas
minas de San Telmo (a lembrar as nossas Minas de S. Domingos) e onde a falta de
sombras foi uma constante. Pela negativa registou-se também o roubo do meu GPS,
enquanto abastecíamos numa “panadería” em Valverde del Camino, já perto do fim
da etapa. Nada a fazer, continuámos para o nosso destino, por uma “via verde”, uns
20kms numa antiga linha férrea, um verdadeiro paraíso à sombra, face ao forno
em que pedalámos o dia todo.
Minas de San Telmo |
2ª Etapa: Trigueros – Puerto de Sta. Maria (142kms, 500mts de desnível):
Uma etapa sem
grandes desníveis, passagem por inúmeras praias desta zona sul de Espanha, e
pelo Parque Nacional de Doñana, com temperaturas mais frescas que no dia
anterior. O que mais se destaca é a travessia de cerca de 30kms na areia
molhada da praia de Matalascañas para se chegar à foz do Guadalquivir, e então
atravessar de ferry para o outro
lado, para Sanlúcar de Barrameda. Esta travessia só é possível de fazer na maré
baixa, e pedala-se bem na imensa extensão do areal de Matalascañas. Não o fazer
obriga a uma volta por terra de mais de 200kms, ou seja mais 2 dias. Tivemos
sorte, e chegámos lá com a maré a baixar. No final, coroámos a façanha com um
mergulho quentinho!
Playa de Matalascañes |
3ª Etapa: Puerto Sta. Maria – Zahara de los
Atunes (98kms, 400mts de desnivel):
Estamos na
provínvia de Cádiz e o dia que se avizinhava de alguma facilidade e de
quilómetros para avançar, revelou-se um verdadeiro inferno! Um vento de Levante
amanheceu forte e foi aumentando ao longo do dia, a rondar os 50km/h e depois
70km/h da parte da tarde. De tal forma que quase nos atirava da bicicleta
abaixo! Foi um regresso à Patagónia, com a diferença de que agora não tinha
alforges, e portanto era mais difícil cair. O pó e areia que comemos o dia
todo, e o desgaste de pedalar com tal vento contra, obrigou-nos a abreviar o
dia.
4ª Etapa: Zahara de los Atunes – Jimena de la Frontera (138kms, 2150mts de
desnivel):
Hoje é que
começa o verdadeiro BTT! Abandonaremos o mar - sem ir a Tarifa (faz parte do novo traçado,
mas nós fomos pelo velho) - e seguimos para o interior. Depois de um troço
inicial com subida e descida técnicas, adensamo-nos numa subida linda que
gostamos de chamar “uma subida à Pirenéu”, ou seja longa e gradual, daquelas
que nunca mais acabam! Optamos por almoçar em El Bujeo (o mais próximo que
estivemos de Tarifa) e voltamos à terra para a segunda longa subida do dia.
Todo o tempo tivemos Gibraltar no campo de visão, o rochedo mais disputado à
face da terra! No fim, antes da chegada a Jimena de la Frontera, um pueblo lindo empoleirado numa encosta,
gozámos de alguns single tracks e
caminhos bem bonitos.
5ª Etapa: Jimena de la Frontera – Ronda (98kms, 2400mts de desnivel):
Jimena de la Frontera |
5ª Etapa: Jimena de la Frontera – Ronda (98kms, 2400mts de desnivel):
São capazes de
imaginar um single track com 8kms de
extensão, com subidas e descidas, com pedra e com terra, alguns só para experts? Pois foi isso o que se destacou
neste dia. Um single de luxo, sempre
a pouca distância da linha férrea, numa GR da Serranía de Ronda. Ao aproximarmo-nos de Ronda, bem no alto de um
monte, não dá para imaginar como vamos subir lá acima… É uma subida brutalmente
dura, após todo o acumulado do dia. Para chegar à cidade legionária é preciso
passar pelo inferno de Dante… para depois alcançar o paraíso, de tão bela que
é!
6ª Etapa: Ronda – Antequera (102kms,
2750mts de desnível):
Para sair de
Ronda começa-se logo a subir… De tal maneira que aos 14kms já tínhamos 800mts
subidos! Após o que se desce por um single
cheio de pedra solta e perigoso (para mim), daí que toca a empurrar! A empurrar
continuei, pois para sair do buraco também era novamente em single, mas a maioria deste não era
ciclável. A paisagem era esmagadora, no vale estamos entrincheirados entre
montanhas altíssimas, à sombra de pinhal. Acercamo-nos de El Chorro e da sua
central hidroeléctrica. Estamos no Parque Natural do Desfiladero de los
Gaitanes, e o single que nos conduz à
barragem é brutal, consigo desfrutar de quase tudo, um verdadeiro desafio!
Chegados à barragem, fazemos um pequeno desvio para ir espreitar o famoso Camino del Rey, onde se ergue uma parede
vertical de 250mts, com uma passagem estreitíssima cravada nas paredes dos
desfiladeiros, construída para os trabalhadores da Central transportarem
materiais.
7ª Etapa: Antequera – Jayena (120kms,
2500mts de desnivel):
Durante a
manhã, o sobe e desce continua, e curtos single
tracks ajudam à variedade do percurso. Almoçamos praticamente na fronteira
da província de Málaga com a de Granada, onde continuamos. A chegada a Jayena
também era desafiante, mais um longo e técnico single track, a desafiar a concentração.
8ª Etapa: Jayena – Pampaneira (98kms,
2660mts de desnível):
Para chegar a
Pampaneira temos de entrar na Sierra Nevada. Toda a manhã a subir. Descemos e
almoçámos em Niguelas, para logo a seguir enfrentarmos mais uma parede, daquelas
de quase cair para trás, como já encontráramos outras. Tomámos a certa altura a
decisão de não seguir pelo traçado novo da TA, e optámos por descer a Lanjarón.
Esta opção acabou por sair-nos muito cara… Para sair de lá, foram 1300mts
subidos em 14kms! Nunca na vida subi tanto em tão pouca distância! As forças
estavam no limite, mas chegámos por fim a Pampaneira, uma vila lindíssima, a
fazer lembrar as ruelas do Piódão.
9ª Etapa: Pampaneira – Laujar de Andarax
(103kms, 2700mts de desnível):
Para sair de
Pampaneira era logo a subir. O percurso hoje leva-nos a Trevélez, o pueblo localizado a maior altitude em
Espanha, a 1500mts. Não há palavras para descrever a beleza e a dureza dos
locais que atravessámos. Da parte da tarde, tivemos de empurrar a bicicleta por
um barranco acima durante uma distância considerável. Chegados ao topo, o
prémio era um single track fantástico
bem lá no alto. Quem muito empurra, sempre alcança…
Trevélez |
10ª Etapa: Laujar de Andarax – San José
(147kms, 2225mts de desnivel):
Laujar de Andarax
já fica na província de Almería. Hoje voltamos ao mar! E temos não só a subida
mais longa de toda a travessia (a começar em La Instinción, Sierra de Gador),
como também a descida mais longa (quase 20kms de caminho das pedras), para
Almería. Para todo o lado que olhemos só se vêem montes, e não se vislumbra uma
forma de sair dali, tem de se passar um a um. Depois de passarmos Almería, vamos
sempre junto à costa até ao Cabo de Gata, e decidimos continuar para San José,
com umas belas paredes, ainda que em alcatrão, para lá chegar. San José e as
praias adjacentes são encantadoras!
San José |
11ª Etapa: San José – Sorbas (95kms,
1635mts de desnivel):
Linda a saída
de San José, com um single sobre o
mar. Dirigimo-nos depois a Rodalquilar, onde existiam minas de ouro, e como em todas as povoações mineiras, parece que
estamos noutro planeta. E é lá que continuamos enquanto cruzamos um território
tipo far west, que foi inclusive
cenário de imensos westerns. Rumamos
depois a Água Amarga, o ponto mais oriental onde chegamos, e onde tomamos um
belo banho no mediterrâneo antes de voltarmos de vez costas ao mar, para nos
adensarmos depois num cenário do outro mundo. Cruzamos o deserto de Tabernas,
são 50kms de total isolamento, sem qualquer ponto de abastecimento (apenas uma
torneira não potável mas donde bebemos abundantemente), um cenário desolador no
único semi-deserto da Europa. A água dos bidons escaldava, atravessar um
deserto com aquele calor, entre as 15 e as 18h, é uma quase loucura, mas de
gente sã não reza a história…
Playa de Água Amarga |
12ª Etapa: Sorbas – Baza (124kms, 2585mts
de desnível):
O cenário de
secura continuou durante a manhã, mas aos poucos começou a mudar. Havia imensas
oliveiras e sobretudo amendoeiras, com um sistema de irrigação automático, gota
a gota… Almoçamos um bocadillo com
2.2lts de Coca-Cola em Senés, porque temos logo um empeno de 900mts de subida
na Sierra de los Filabres, para chegarmos ao ponto mais alto de toda a TA: o
Alto de Velefique, aos 1860mts.
13ª Etapa: Baza – Pontones (110kms, 2055 de desnivel):
Hoje é um dia
mítico. Atravessamos a Sierra de Cazorla, são 65kms sem qualquer povoação, em
isolamento absoluto, sendo o percurso mais bonito de toda a TA: bosques
frondosos, fetos, vegetação abundante, cursos de água (donde bebi bastante),
cervos selvagens, subidas e descidas, montanhas esmagadoras para onde quer que
olhássemos, e por fim, uma mudança radical de cenário para sair de Cazorla: o
verde é substituído por um cenário quase lunar, de montes carecas, cobertos por
uma espécie de musgo, monte atrás de monte, cerca de 15kms, antes de chegarmos
por fim a Pontones, por single tracks
lindíssimos!
14ª Etapa: Pontones – Albergue Vaquerizo
(120kms, 2055 de desnível):
Sierra de Cazorla |
A saída de
Pontones é tão bonita quanto a chegada. Pelo caminho cervos sempre à vista. Vamos
em direcção à Sierra de Segura, o que quer dizer subidas e mais subidas.
Almoçamos em Beas de Segura, e vamos enfrentar o pico de maior calor que
passámos em toda a TA. Entre Beas e Aldeahermosa, o termómetro terá passado os
45o, a água dos bidons fervia e o ar que respirávamos quase
queimava. Indecisos sobre ficar por ali, o funcionário da gasolineira
salvou-nos, dizendo que havia um albergue na Sierra Morena, a uns 10kms. Quando
avistámos o albergue… Chegámos ao paraíso: no meio do nada, sem luz eléctrica
ou água da companhia, mas com gerador e furo, e uma piscina de encher os olhos,
estava o “Vaquerizo”. E ficámos no paraíso nessa noite!
15ª Etapa: Albergue Vaquerizo – Andújar (155kms, 2035mts de desnível):
Albergue "Vaquerizo" |
15ª Etapa: Albergue Vaquerizo – Andújar (155kms, 2035mts de desnível):
Desde ontem
que estamos na província de Jaén. Atravessamos a Sierra Morena, por estradões a
subir e a descer entre pinheiros mansos e oliveiras, um cenário diferente do anterior
mas bonito à sua maneira. Ambicionamos chegar a Andújar, por isso em Baños de
la Encina, decidimos continuar, mas os caminhos cheios de pedra rolada ou
seixo, barragem acima, não facilitaram.
Sierra Morena, com cervos lá em baixo |
16ª Etapa: Andújar – El Guijo (134kms, 1820mts de desnivel):
Entramos na
província de Córdoba, que sinceramente se revelou a menos interessante. De
manhã muito asfalto, e de tarde muitos portões que tivemos de abrir e fechar,
algumas cercas que tivemos de passar porque o aviso “Peligro, ganado bravo” e
os animais mesmo no caminho que íamos atravessar, não nos inspiraram confiança…
No fim do dia, perdemos mais de 2h a desbravar mato num suposto sendero que tinha desaparecido e nos
obrigou a andar a pular redes para sair dali. Assim, o tempo perdido
obrigou-nos a ficar em El Guijo e usufruir da bela da piscina.
El Guijo |
17ª Etapa: El Guijo – Alanís de la Sierra (146kms, 2225mts de desnivel):
Hoje parece que
estamos nas Aldeias Históricas: grandes lajes de granito e piso semi-arenoso,
num constante sobe e desce. De tarde sabemos que temos pela frente 65kms de um
alcatrão em muito mau estado, a subida da Sierra Norte, para chegar a Alanís.
Nunca vi tantos buracos na minha vida! A meio entramos na província de Sevilha.
Duríssima a subida, dos 65kms, 40 foram em subida. Cheguei a Alanís sem comida
e sem água. E despejámos uma garrafa de 2.2lts de Coca-Cola!
18ª Etapa: Alanís – Aracena (137kms, 2200mts de desnível):
Alanís de la Sierra, em fiesta |
18ª Etapa: Alanís – Aracena (137kms, 2200mts de desnível):
Na TA nunca se
pode desligar o modo “subida”! A Sierra de Aracena e Picos de Aroche é um verdadeiro
desafio. Seguimos para a província de Huelva, e por entre campos de gado, passamos
por mais uma antiga mina. Acercamo-nos da impressionante barragem de Aracena, e
entramos nesta bela cidade, que é capital de comarca.
19ª Etapa: Aracena – Vila Verde de Ficalho
(87kms, 1800 de desnível):
Partimos de manhã em direcção a Jabugo, para os mais
belos single tracks de toda a
travessia, à sombra e junto a uma linha de água, lindíssimo! Chegados a Aroche
(início e fim oficial da TA) completa-se o círculo e resta-nos fazer de novo a
ligação, fora de estrada, até Rosal de la Frontera e seguir para V. Verde de
Ficalho por estrada.
Tive o prazer de ler tudinho... e o que acontece ? Fica-se com um "sabor amargo" , sabor a pouco, queria lá estar também.
ResponderEliminar(y) "Viver a vida!!!!!!"
BRUTAL...
ResponderEliminarSó de ver fiquei com calor Andalus. :)