“(…) Vais iniciar uma
experiência que desde o momento em que decidiste abraçá-la ela já mudou a tua
vida, a tua rotina, a tua relação com a família e amigos, porque é muito o
esforço que fizeste e muitas as coisas que deixaste para segundo plano. (…)
Tudo fizemos para que no fim deste percurso, após os 600kms e no fim de cada
noite quando olhares para as estrelas e duvidares se amanhã irás conseguir, a
recordação da experiência fique tatuada na tua alma como algo único e
inesquecível. “ (In Race Book Titan Desert by
Garmin)
Assim é a Titan Desert, PURA AVENTURA! Essa é a palavra que
define o Titan. Quem não se sentir bem fora da sua zona de conforto durante
vários dias não desfrutará deste desafio, não se dará ao deserto, não se
misturará com o ar quente e seco, não inalará o odor do incenso e outros aromas
tipicamente marroquinos.
Um acampamento TITAN tem este aspecto... |
A Bikes World Portugal foi a promotora do concurso que me
levou a esta prova mítica, um autêntico Dakar em bicicleta! Desde os acampamentos
no meio do nada, de uma dimensão gigante para 600 participantes, alojados em
“haimas” (tendas marroquinas feitas com panos de lã e erguidas com grandes
estacas), com direito a tenda-restaurante com buffet aberto desde a chegada dos
primeiros ininterruptamente até às 17h, e depois de novo para jantares,
pequenos-almoços desde as 5h da manhã; bar para venda (com os “titanitos”,
espécie de moeda oficial da prova) de bebidas e alguns extras; duches, WCs e
toda uma estrutura de apoio, com 300 elementos no staff, camiões para o
transporte diário de bagagens e material variado, helicóptero, jipes… Assim se
percebe que esta organização com 10 anos de experiência seja uma máquina
logística bem oleada, capaz de proporcionar uma experiência do deserto que só
quem o conhece poderá avaliar bem.
Pela descrição, parece que temos muitas facilidades? Pura
ilusão. Após cruzarmos a meta vem a 2ª parte da etapa: há que ir buscar o saco,
que está numa fila de outros tantos, pousado no solo cheio de pó, sob um sol
directo que facilmente atinge os 45º ou mais, arrastá-lo ou pegar-lhe em peso
(uns 20kgs) e procurar a nossa “haima” no longo labirinto (bem sinalizado) do
acampamento. Desde o momento em que tomamos o merecido duche até ao momento em
que, ao final da tarde, começa a ficar um pouco mais fresco, o suor continua a
escorrer pelo corpo, a sede continua apesar dos líquidos ingeridos, o nariz
continua incrivelmente seco e chega a sangrar devido ao calor e ausência de
humidade, e o único local onde se consegue estar é na tenda-bar, onde passamos
o tempo espojados nos tapetes marroquinos ou nos “puffs”. Os mais afortunados
vão às massagens (serviço bem pago), e os menos recheados (como eu!) limitam-se
ao precioso serviço Compex diário, patrocinador que oferece todos os dias 20min
(dá para uma “siesta”!) no programa de recuperação deste belo aparelho. Mas
como é grátis, é preciso esperar na fila…
1ª Etapa – Etapa Xmile Cycle Team: Boumalne Dades –
Aknioun (115kms, 2770mts acumulado):
A 1ª etapa é a mais assustadora, não só pelas duas grandes
subidas do dia que atravessam as montanhas do Atlas, tendo a 2ª maior
inclinação, como também pela 1ª descida, para a qual muito tínhamos sido
alertados para o perigo. Como sempre, no início de uma prova destas, o arranque
é incrivelmente rápido! São cerca de 20k planos e rolantes, em que todos querem
posicionar-se bem e chegar o mais à frente possível. Muitas quedas e bidons
pelo chão logo no início. Logo ao km4 vejo o Marco Chagas e o Nuno Margaça
parados numa berma já com um problema num pneu. Não me preocupo e sigo, pois
eles estão em equipa de 3, juntamente com o Pedro Serras, e juntos arranjam
solução. Foi sempre a dar gás até ao CP1, que estava sensivelmente ao km18.
Estes CPs são apenas controlos de passagem electrónicos OBRIGATÓRIOS. Eu só
pensava para com os meus botões que não aguentaria este tipo de andamento
rápido durante muito tempo. Mas logo a seguir vem aquilo que eu gosto: subidas!
Coloco o meu ritmo e olho para a encosta, com o caminho a serpentear em curva e
contra-curva por ali acima, dezenas e dezenas de atletas a decorar o quadro. Eu
vou-me sentindo melhor e vou aumentando aos poucos o meu ritmo. No topo da
subida está o 1º abastecimento líquido (EH), onde o nosso companheiro Paulo
Quintans trata do nosso bem-estar! Enquanto coloco mais água no Camelbak,
passam o Marco e o Nuno sem parar, problema no pneu já resolvido. Eu sinto-me
cada vez melhor, e na suposta descida perigosa ultrapasso muita gente. Tenho a
melhor bicicleta do mundo, penso, que a isso se presta e me dá enorme confiança.
É interminável, mais de 1h a descer, com um cenário de montanha brutal! Páro na
EH seguinte e a partir dali tudo muda: uns kms mais à frente, coincidente com a
2ª subida, duríssima, surge-me uma forte dor abdominal do lado direito que não
mais me larga até final da etapa. A princípio tento ignorar, contrariar,
suportar, mas é mais forte que toda a minha vontade junta, e a muito custo
arrasto-me autenticamente subida acima, perdendo assim alguns dos lugares
conquistados, mas pior é a sensação de impotência, porque as pernas estão
óptimas, mas nem a descer a dor me deixa embalar. Chego à meta em 9º lugar das
femininas e é então que percebo que o nosso José Silva ganhou a etapa e é líder
do Titan! Passou-me tudo!
2ª Etapa – Etapa Gold Nutrition/Espigão
Suplementos/5Quinas: Aknioun – Toughach (112kms, 930mts acumulado):
Tudo está em aberto à partida para a 2ª etapa, com um perfil
muito mais amigável, embora ainda assim nada fácil. Mais uma vez um arranque
fortíssimo, pois tratava-se de embalar o mais que se conseguisse e tentar
apanhar grupos para nos protegermos do vento. Começo a perceber que há muitas
“individuais” com muitos ajudantes a trabalharem para elas. Eu vou tentando
apanhar umas rodas… Hoje não há dor que me abale, mas claro que a etapa anterior
deixou algumas marcas em todos. Nas constantes mudanças de direcção e
cruzamentos (sempre balizados) desta etapa perde-se algum ritmo e
encontramo-nos muitas vezes de cara ao vento, mas mesmo assim consigo imprimir
um bom ritmo e passar por algumas participantes femininas, embora tal seja
enganoso uma vez que muitas delas estão em dupla mista e não são, portanto,
adversárias. Eu continuei em 9º lugar, e o nosso José Silva manteve a camisola
de líder mesmo não tendo ganho a etapa. Também o Marco e o Nuno não tiveram
problemas mecânicos nem cãibras, sendo que só os vi na partida! O Pedro Serras
dizia ter “partido o motor” quando o apanhei já a uns 10/12kms da meta e veio
na minha roda até ao acampamento. Uma nota: nesta noite dormimos a 2000mts de
altitude, e sempre andámos em cotas não inferiores a 1500mts. O frio de manhã
cedo e à noite contrastava com as temperaturas abrasadoras durante o dia.
Bem-vindos ao deserto!
3ª Etapa – Etapa Bikes World: Toughach – Lamdoure
(108kms, 1120mts acumulado) – ETAPA MARATONA:
O Titan não é o Dakar em bicicleta por nada. É que entre
muitas outras semelhanças, tem também uma etapa Maratona, em que não existe assistência
mecânica ou de massagens. Os atletas carregam o que precisarem para esse dia e
para o seguinte, sendo que a organização providencia uma grande tenda comum,
banhos e alimentação. Quem quiser opta por carregar saco-cama, roupa lavada ou
lavar a que tem e o mais que achar necessário. É peso, mas também é conforto, o
que significa melhor descanso. Esta etapa volta a ter uma grande subida nos
primeiros 40kms, e uma boa descida para recuperar lugares, e depois alterna
subidas e descidas sem grande expressão, mas a perfazerem o acumulado de mais
de 1100mts e a dar-nos belos cenários de montanha desértica. Já falei do
vento?? E já falei do calor?? Pois o dia da etapa maratona teve tudo isso
elevado ao infinito. No total, bebi mais de 6lts de água neste dia! Consegui
apanhar um grupo no momento chave e esfalfei-me, desgastei-me e dei tudo o que
tinha para me manter lá, ou seria uma batalha dura, solitária e inglória contra
o vento. O momento em que finalmente vejo o acampamento depois de uma curva,
escondido atrás de uma montanha foi uma quase catarse! Catárticas foram também
todas as horas passadas naquele acampamento num cenário de eleição, em que tive
a sensação de sermos aventureiros em locais totalmente inexplorados. E assistir
a mais uma entrega da camisola de líder ao José Silva sob o céu estrelado, um
privilégio só reservado a quem não tem medo do desconhecido.
4ª Etapa – Etapa
Ciclomarca: Lamdoure – Erg Znaigui (98kms, 585mts acumulado):
Acordo com dores de garganta… mau sinal, mas não tenho tempo
para pensar nisso! Vamos à 2ª parte da Etapa Maratona, com um desnível mais
simpático, pelo menos assim parecia… As montanhas ficam para trás e
adensamo-nos cada vez mais no deserto. O vento e o calor não dão tréguas, tento
rolar com pequenos grupos, por vezes apenas 2 ou 3 (equipas), mas umas vezes
são mais lentos, outras mais rápidos. Estou há quase 10kms sem água mas na
cauda de um grupo bom em que seguia o José, um amigo de Huelva, quando chego à
última EH, guardada pelo nosso Paulo Quintans. Bebo muito e encho o Camel,
enquanto o Paulo me diz para me despachar e não perder o grupo. Isso queria eu
Paulo! Não mais o apanhei e o vento contra foi atroz, mais de 20kms
rigorosamente sozinha, numa luta com a minha força de vontade e de pernas.
Jamais me passou pela cabeça poupar-me, fui tão depressa quanto pude num
combate mano a mano com as nuvens de poeira que aquela ventania levantava,
completamente seca por dentro, por fora e com a poeira a invadir-me pulmões e
garganta. A cerca de 8/10kms apanho o Borja, um amigo que fiz no avião, e ele
ia pior que eu. Digo-lhe para se manter na minha roda e vamos paulatinamente,
com o vento cada vez mais forte, até que a uns 3kms começamos a ver o
acampamento mas parece que nunca mais lá chegamos! O vento é tanto que até
dificulta a visão, está tudo turvo. Mas lá cruzamos a meta lado a lado. Mais
uma etapa, mais uma batalha. Estou exausta, toda entupida e agora percebo que
estou terrivelmente constipada. No fim do dia, enquanto me afogo em mais de
7lts de água que bebi em toda a jornada, constato que subi ao 8º lugar e assisto
à confirmação da liderança do José Silva. Amanhã é a etapa de navegação (Etapa
Garmin) e a passagem das dunas.
5ª Etapa – Etapa Xmile Cycle Team: Erg Znaigui –
Merzouga (108kms, 510mts acumulado):
Depois de termos recebido no briefing da noite as
coordenadas dos CPs obrigatórios, cada atleta e/ou equipa traçava o rumo que
queria, tendo total liberdade de navegação. Nesta etapa tive a ajuda e
companhia do Javier Carreiras, um galego que estava connosco e que era como se
fosse português. Mantivemos um andamento e opções bastante interessantes. A
passagem das dunas foi muito divertida, extenuante é certo. Reparei que
demorámos 1h30 para percorrer 8k, sendo uns 3 ou 4 totalmente de dunas. Por
vezes conseguimos pedalar nalgumas partes de areia mais dura a descer, mas
nunca era por muito tempo, só vazando muito os pneus, o que era uma boa opção
para quem quisesse poupar tempo. Rolámos muito bem até que aconteceu o que não
podia acontecer: o CP 4 não estava nas coordenadas que nos tinham sido dadas, e
nem sequer próximo, não se avistava. Apercebemo-nos porque nos avisaram, são as
vantagens de andar no meio do pelotão. A mesma sorte não tiveram os da frente,
entre os quais o José Silva, que neste dia viria a perder a liderança por um
erro claro da organização. Foram no total 4kms a mais, para ir ao CP e voltar. A
minha moral caíu um pouco mas o ânimo do Javier ajudou. Não sei se já falei do
calor e do vento… Já?? Estou-me a repetir porque eles se repetiam, dia após
dia, etapa após etapa, a desidratação, a sensação de secura e de luta inglória
contra um vento implacável, que nesta etapa quase me derrotavam, não fosse a
protecção do Javier. A cerca de 15kms do final, somos apanhados por um grupo
onde seguiam várias raparigas com os “gregários” delas e/ou equipas. Por esta
altura já eu tinha travado conhecimento com várias, e mantive-me ali, o
andamento estava mais que bom. O Javier, que ainda tinha energia, foi-se
afastando e fez uma boa ponta final. O momento bonito do dia foi as 4 raparigas
terem cruzado a linha de meta ao mesmo tempo, e os rapazes atrás. O momento
feio foi a organização não ter tomado a decisão justa que preservasse a verdade
desportiva…
6ª Etapa – Etapa
CCRE Ciclistas Comunes Retos Extraordinarios: Merzouga – Maadid (65kms,
300mts acumulado):
Na etapa de consagração corri com as cores dos meus amigos
colombianos do CCRE. Que difícil foi encontrar um ritmo, sensação de pernas
pesadas, pulsação que não sobe, vento que não dá tréguas, calor ao qual não nos
habituamos… mas está quase! E como sempre, vou tão rápido quanto posso, e só
não faço o que não posso, apesar de ser o último dia e poder ter a tentação de
abrandar. Mas não quero perder pitada! Não posso porque está quase a acabar e
sei que amanhã estou aliviada mas depois de amanhã já estarei nostálgica, e
agora estou aqui a escrever este texto e cheira-me a incenso, e todas as manhãs
falta-me o “Buenos días Titanes” que se ouvia no acampamento após o despertar,
e oiço a mesma música que passava todas as manhãs… Terminei o Titan no 7º lugar
feminino, mas não terminei a minha vivência do deserto, não terminei a partilha
que não se esgota com este texto, e as amizades que fiz ficam para sempre…
Como
se pode ler no Race Book da Titan Desert by Garmin: “As emoções são vida, tudo o resto
não passa de uma pausa….”
Corto a meta com a bandeira de Portugal na mão! |